STF Reconhece racismo Estrutural no Brasil e Propõe Ações Reparadoras

O Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou uma decisão histórica ao reconhecer a existência do racismo estrutural no Brasil e determinar a implementação de um conjunto de medidas para combater as violações de direitos que afetam a população negra. Essa resolução posiciona o Brasil em um grupo restrito de nações democráticas cujos tribunais superiores já emitiram sentenças significativas sobre o tema. Em diversos países, como Canadá, África do Sul e Colômbia, as altas cortes reconhecem, há décadas, que grupos raciais ou étnicos enfrentam desvantagens de natureza histórica e sistêmica, o que justifica a adoção de políticas diferenciadas e ações estatais específicas para correção dessas disparidades.

O conceito de discriminação estrutural, embora com variações adaptadas à realidade de cada nação, compartilha um núcleo central. Conforme explicado por Lia Schucman, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora dedicada à temática racial, esse conceito fundamentalmente se refere à “crença de que a ideia de raça sustenta desigualdades sociais, econômicas e políticas”. A professora ilustra a dinâmica de uma estrutura excludente no Brasil com um exemplo prático: em um cenário de normalidade, sem intervenções afirmativas, processos seletivos para cargos de liderança em empresas, como o de CEO, ou para posições acadêmicas, como a de professor universitário, tendem a resultar na predominância de indivíduos brancos. Esse desfecho, segundo Schucman, é uma manifestação do racismo sistêmico inerente às estruturas sociais.

A Trajetória de Desigualdades e a Persistência do Racismo

A Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, ecoa essa perspectiva ao descrever a trajetória da população negra no Brasil. Ela salienta que essa história é profundamente marcada pelos “nefastos reflexos da escravização”, que culminaram em uma sucessão de desigualdades sistêmicas. Tais desigualdades, segundo a ministra, perpetuam desvantagens e impõem barreiras em todas as esferas da vida, exemplificando com as oportunidades de emprego e estudo, que frequentemente não se encontram acessíveis para pessoas negras na mesma extensão que para pessoas brancas. A ministra reforça que essa realidade não é meramente um resultado de casos isolados de discriminação, mas sim a expressão de um racismo sistêmico, profundamente enraizado nas estruturas da sociedade brasileira.

A percepção de uma base racista é um ponto de convergência com as experiências de outras nações. No Canadá, por exemplo, a Suprema Corte estabeleceu o entendimento de que a igualdade constitucional deve ser substantiva, transcendendo a mera formalidade. A jurisprudência canadense reconhece que regulamentos e normas que aparentam ser neutros, como a afirmação de direitos iguais para todos, podem, de fato, perpetuar desigualdades estruturais, especialmente contra populações negras e indígenas, ao ignorarem as condições históricas de desvantagem.

A África do Sul, por sua vez, possui uma Corte Constitucional estabelecida após o término do apartheid, um regime de segregação racial. Sua atuação é guiada por uma Constituição que explicitamente reconhece o legado de exclusão racial. As decisões dessa corte partem do princípio de que o Estado tem o dever imperativo de desmantelar as estruturas herdadas do regime segregacionista, o que legitima a implementação de políticas de ação afirmativa e de redistribuição de recursos e oportunidades para corrigir as injustiças históricas.

Na Colômbia, o sistema judiciário também admite a existência de discriminação histórica contra as comunidades afrodescendentes. Essa discriminação é particularmente observada em questões relacionadas a direitos territoriais, deslocamento forçado e acesso a políticas públicas essenciais. Em alguns vereditos, o tribunal superior colombiano chegou a declarar a omissão estatal, compelindo o governo a adotar medidas abrangentes e eficazes para corrigir violações sistemáticas de direitos que afetam esses grupos.

O Julgamento do STF e a Discussão sobre “Estado de Coisas Inconstitucional”

A ação judicial examinada pelo STF também abordava a questão da omissão do Estado brasileiro na mitigação das violações de direitos da população negra. Esse cenário é juridicamente denominado “estado de coisas inconstitucional”, uma terminologia que indica uma falha sistêmica e contínua do poder público em garantir direitos fundamentais. O julgamento teve início em novembro, com o voto do ministro Luiz Fux, relator do caso no STF. Naquela ocasião, Fux manifestou-se favoravelmente à declaração do “estado de coisas inconstitucional”, reconhecendo, assim, a existência de uma violação sistemática dos direitos fundamentais da população negra do país.

Contudo, em uma sessão subsequente, realizada na quinta-feira (18), o ministro Fux reajustou seu voto. Ele optou por reconhecer a presunção do racismo como um alicerce da sociedade brasileira, mas, diferentemente do voto original, negou que as instituições fossem as únicas culpadas por essa realidade, afastando a declaração do “estado de coisas inconstitucional”. Nesse sentido, votaram também os ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Essa vertente de votos entendeu que, embora existam violações graves, o conjunto de medidas já adotadas pelo Estado ou aquelas em andamento para sanar as omissões históricas seria suficiente para afastar a caracterização de um “estado de coisas inconstitucional”.

Em contraste, os ministros Edson Fachin, Flávio Dino e Cármen Lúcia votaram pelo reconhecimento da omissão estatal sistêmica no enfrentamento das violações de direitos da população negra. Em seu pronunciamento, o ministro Fachin aproveitou a oportunidade para aprofundar sua visão sobre o racismo estrutural no país e a responsabilidade institucional associada. Ele argumentou que as violações contra pessoas negras não são eventos isolados ou circunstanciais, mas sim contínuas e resultantes de um processo histórico de longa duração. Esse processo, segundo Fachin, remonta ao regime escravocrata e à subsequente consolidação de um imaginário de “democracia racial”. Tal conceito, na prática, serviu para invisibilizar o racismo, dificultar sua identificação e enfrentamento adequados, e silenciar o debate sobre a necessidade de políticas reparatórias.

Perspectivas e Implicações da Decisão

A decisão do STF gerou diferentes interpretações entre os especialistas. Thiago Amparo, professor de direitos humanos na Fundação Getulio Vargas (FGV), avalia que o Supremo Tribunal Federal ficou “no meio do caminho” com sua resolução. Para ele, a corte reconheceu o racismo estrutural, mas não a omissão sistemática do Estado, justificando essa posição com base nas ações já implementadas contra o racismo em esferas legais e de políticas públicas. Amparo contesta essa justificativa, argumentando que a existência de ações não isenta o poder público de falhas no combate ao racismo, citando a persistência da violência policial como um exemplo concreto dessa lacuna.

José Luiz Souza de Moraes, presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo, também aponta o não reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional” como uma falha na decisão. Contudo, ele enfatiza que a afirmação do racismo estrutural pelo STF já representa um marco histórico e político de grande relevância a ser celebrado. Moraes destaca que essa decisão “abre portas para a elaboração de políticas públicas, através das quais é possível mudar o cotidiano de toda a população. É através delas que o estado distribui a Justiça”, ressaltando o potencial transformador da medida.

Na etapa final de seu voto, o ministro Fux propôs que o STF formalizasse o reconhecimento de um quadro de contínua violação dos direitos fundamentais da população negra no Brasil. Além disso, ele estabeleceu a exigência de ações específicas por parte do Estado em diversas áreas cruciais, incluindo saúde, segurança alimentar, segurança pública e proteção da vida. A proposta também prevê a criação de políticas reparatórias e de iniciativas voltadas para a construção e preservação da memória desse grupo populacional, visando não apenas corrigir injustiças atuais, mas também honrar o passado e planejar um futuro mais equitativo.

Ações na Educação e Cultura

No setor educacional, por exemplo, a tese defendida pelo ministro Fux determina a capacitação de professores. Essa capacitação deve ser realizada, inclusive, em cooperação com universidades do continente africano, com o objetivo de aprimorar o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas instituições de ensino do país. Essa medida visa enriquecer o currículo e promover uma compreensão mais profunda das contribuições e desafios enfrentados pela população negra.

Reformas no Sistema de Justiça

Em relação ao Judiciário, o ministro sugeriu a implementação de protocolos de atendimento específicos para pessoas negras nos diversos órgãos de Justiça. Isso inclui tribunais, Ministério Público, Defensorias Públicas e as forças policiais, buscando garantir um tratamento equitativo e livre de preconceitos dentro do sistema legal. Douglas Leite, professor de direito público na Universidade Federal Fluminense (UFF), observa que, apesar do avanço alcançado, o país ainda está distante de um “status aceitável de igualdade racial” em indicadores cruciais como violência, renda e educação. Paulo Ramos, coordenador de pesquisas do Afro Cebrap (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial), complementa que as instruções presentes no voto do ministro Fux criam um espaço fundamental “para atingirmos outras camadas e instituições brasileiras que muitas vezes não operam de forma democrática”, indicando a necessidade de uma transformação cultural e institucional mais ampla.

FAQ: Perguntas Frequentes sobre a Decisão do STF e Racismo Estrutural

O que o Supremo Tribunal Federal reconheceu em sua decisão?

O Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência do racismo estrutural no Brasil e determinou a adoção de medidas para enfrentar as violações de direitos da população negra, colocando o país em um grupo restrito de democracias com decisões semelhantes.

Qual o significado de racismo estrutural segundo os especialistas?

Racismo estrutural significa a crença de que a ideia de raça sustenta desigualdades sociais, econômicas e políticas. Ele se manifesta quando, mesmo em situações de aparente normalidade e sem ações afirmativas, os resultados de processos seletivos ou oportunidades na sociedade tendem a ser racialmente desiguais, perpetuando desvantagens históricas.

Qual a diferença entre os votos dos ministros em relação ao “estado de coisas inconstitucional”?

A maioria dos ministros, incluindo o relator Luiz Fux em seu voto reajustado, reconheceu o racismo como alicerce da sociedade, mas negou o “estado de coisas inconstitucional”, argumentando que medidas estatais já em curso mitigam a omissão. Uma minoria, incluindo Edson Fachin, Flávio Dino e Cármen Lúcia, votou pelo reconhecimento da omissão estatal sistêmica, entendendo que as violações contra a população negra são contínuas e resultantes de um processo histórico.

Fonte: https://jornaldebrasilia.com.br

Related Posts

  • All Post
  • Cultura
  • Curiosidades
  • Economia
  • Esportes
  • geral
  • Notícias
  • Review
  • Saúde

Escreva um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Edit Template

Nunca perca nenhuma notícia importante. Assine nossa newsletter.

You have been successfully Subscribed! Ops! Something went wrong, please try again.

© 2025 Tenho Que Saber Todos Os Direitos Reservados

Categorias

Tags